sábado, 27 de novembro de 2010

A cura pela palavra

A cura pela palavra
Edson Capoano

Freud, uma das referências mais importantes para a história do conhecimento, descobriu que os males do corpo podiam ser curados pelo ato de se comunicar. A construção livre de uma narrativa por parte do indivíduo poria ordem no caos que o levara ao tratamento terapêutico. Enquanto Anna O. dividia seus tormentos pessoais com ele e Josef Breuer, libertava-se de seus traumas e reconectou seu corpo e alma.

Outro humanista de referência, Joseph Campbell, também identificara a “cura pela palavra”, mas de maneira antropológica e mitológica. Estudando as práticas xamânicas, viu como estes indivíduos ajudavam os membros de suas comunidades a dialogar com seus anseios mais profundos, através de imagens arquetípicas e imemoriais.

Na literatura, Mario Vargas Llosa romanceou em “Hablador” a história de uma espécie de comunicador indígena, cujo papel social era manter viva uma memória social através das relatos que contava à sua comunidade machiguengua, dispersa pela amazônica peruana, dando-lhes informações de como se defender e se curar dos “demônios” trazidos pelo homem branco, no caso, as doenças as quais não tinham defesa imunológica.

Estes três casos nos servem de referência para entendermos a importância da comunicação no processo curativo humano. Em tempos de novas revoluções tecnológicas, que por vezes acentuam o mecanicismo e o positivismo das práticas sociais, nunca é demais voltarmos a atenção às potencialidades e limitações do corpo, que é uma complexa intersecção entre natureza biofísica, natureza social e cultura.

A acentuação das técnicas e tecnologias médicas não escapa deste raciocínio. Desde a simbólica invenção do estetoscópio, ícone do afastamento entre médico e paciente, cada vez mais se vêem, nos consultórios e corredores médicos, seres humanos interpretados como dados em uma prancheta e telas de ultrassom. Por outro lado e cientes desta funcionalizaçao do tratamento em saúde, especialistas buscam a humanização das relações médicas. A partir do paciente, não da doença.

De fato, é difícil delimitar onde começa o corpo físico e termina a mente, a alma e o espírito que definem um ser humano. São inúmeras as doenças decorrentes de atividades sociais e complicações mentais. O contrário também ocorre. O padecimento do corpo e a conseqüente entrega moral do homem à doença pode significar uma combinação fatal.
Mais processos semelhantes entre corpo e comunicação podem ser notados. Os radicais livres, por exemplo, são moléculas sem par que podem causar danos às nossas células. São, portanto, detritos dentro de nossos corpos. Na comunicação, ocorre fenômeno semelhante. Vilém Flusser nos alerta sobre o detrito informacional que um indivíduo contemporâneo assimila, sob forma de cacos de informação. É um tipo de corpo tóxico na relação homem-informação.

Quando os dois “detritos” se complementam, talvez percebamos a importância da relação entre saúde e informação. Cada vez mais a população tem acesso a informações técnicas e medicas pela internet. Não é raro que pacientes de classes sociais medias e altas cheguem às consultas com relatos do que tem, o que precisam e, na verdade, mais dúvidas e temores do que antes de pesquisarem suas doenças. Na outra ponta, os cidadãos mais pobres, desprovidos até mesmo do médico que os possa receber, buscam na auto-medicação ou nos conselhos de balconistas de farmácia remédios que lhes contenham os sintomas de doenças que mal conhecem.
Nesses dois exemplos, vemos o mal que pode causar a informação detrito na área medica. Pior que isso, vemos traços da substituição ou descrença do paciente perante o médico, como se destituído do posto de mediador entre o indivíduo e a cura. Seja pela avaliação estilo SUS, olhando o número da carteirinha em lugar da pessoa, seja pelos tratamentos cibernéticos, eficientes mas frios e desprovidos do acompanhamento pessoal que só um médico pode realizar.
Felizmente, tais métodos funcionalizados de tratar e se comunicar não são bem vistos por muitos médicos. Mais: eles têm consciência de que podem ser os articuladores de um processo curativo entre os pacientes, além do tradicional papel de únicos guardiões do saber médico.
Afinal, se o homem põe sentido na realidade, quem melhor que o próprio ser humano para nomear e enfrentar uma doença, algo que muitas vezes se percebe na mais profunda intimidade individual? De quantas maneiras pode se definir alguém doente e como se sente? Que processos mentais terá de desenvolver para se curar? Seguramente, não será apenas com fórmulas químicas, bases de dados e exames quantitativos. O esforço que realiza o vice-presidente José Alencar é um exemplo estimulante desse pensamento.
A percepção da doença e da cura está no indivíduo e no seu corpo. O comportamento individual é determinante, gerando aspectos sociais que facilitam ou dificultam a infecção por HIV, segundo a Dra. Sônia Geraldes, médica infectologista e membro da Secretaria de Saúde do D.F. Valores hegemônicos das comunidades, ou seja, a falta de diálogo entre setores sociais sobre novos hábitos de relacionamento e sexualidade podem agravar o risco dos indivíduos contraírem doenças.
Por isso, a comunicação que estimula a troca interessada entre emissor e receptor, a partir de necessidades biológicas ou culturais, gera inúmeras iniciativas de troca e diálogo no ramo médico, possibilitando que pacientes conheçam melhor suas necessidades entre si e os médicos, por sua vez, percebam as necessidades humanas por detrás da doença.

A eficiência do diálogo se pode notar no grande número dos grupos de pesquisa entre investigadores, médicos e voluntários sobre temas de saúde pública, como é o caso do projeto Bela Vista, que ministrou o Dr. José da Rocha Carvalheiro, médico e professor Titular da USP.
A pesquisa trabalhou com grupos de risco ao HIV que não se identificavam como tal, homens que não reconheciam, ao menos discursivamente, a identidade homossexual em suas práticas relacionais. A partir de grupos de diálogo, foram percebidas formas de narrativa mais inclusivas que as praticadas regularmente em consultórios e, como confessou o próprio Dr. Carvalheiro, promoveu-se a produção compartilhada do saber, recusando-se a imagem do especialista médico como único legitimador do processo curativo.
Desde 1951, os Alcoólicos Anônimos (AA) e Familiares Anônimos (Al-anon) também praticam reuniões de diálogo social e humanizado, permeadas de informações técnicas e médicas, mas que não excluem as experiências pessoais e a importância do indivíduo no processo de cura. A identificação do problema pessoal com os demais membros gera conhecimento coletivo e o mais importante, a esperança de poder lutar contra a doença e superá-la, assim como outros adictos o fizeram e estão lá, no grupo de voluntários, para contar sua história. O AA e Al-anon estão em mais de 100 países e, no Brasil, contam com mais de 900 grupos, todos amparados por profissionais da saúde e por uma rede de solidariedade que humaniza o drama do vício por bebida e drogas.
A valorização destes lugares sagrados, o indivíduo e o diálogo, potencializa o trabalho médico, pois transforma o paciente em sujeito e o medico em mentor, desfuncionalizando a medicina e a ciência para uma relação de respeito. Quem se lembra da fragilidade emocional quando se está doente, ou seja, todo ser humano vivo, pode entender a importância desse diálogo fraternal.